quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Abuso de Marx

Já é um feito recorrente, um equívoco comum de que também eu fui vítima durante demasiado tempo. Mas à história há que fazer homenagem, e sermos sempre humildes, por um lado, e bem cépticos em relação a verdades que temos por demasiado evidentes.

Falo do equívoco que se faz à citação mais popular e dita infame de Karl Marx, que após a experiência da perseguição religiosa do séc. XX, não se lhe guarda nenhum amor, por assim dizer:

A religião é o ópio do povo


Lida assim descontextualizada, parece estarmos perante um manifesto anti-religioso, que aponta o dedo acusador à religião por ser um opiato, um serenador, uma ferramenta de controlo do poder sobre o povo, e que o povo, aparentemente (segundo a citação) parece gostar bastante (tal como gosta de ópio).

Mas lida no seguimento de todo o seu parágrafo (minha tradução), a citação ganha novos contornos desconhecidos por, diria, 99% de toda a população que conhece a citação popular:

O sofrimento (agonia) religioso é ao mesmo tempo a expressão de verdadeiro sofrimento e o protesto contra esse sofrimento. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma situação sem espírito algum. É o ópio do povo. A abolição da religião como a ilusão da felicidade é necessária para a sua verdadeira felicidade. A exigência do abandono da ilusão sobre a sua condição é a exigência do abandono da condição que necessita de ilusões.


Bem diferente. Na verdade, Marx não embarca na luta contra a religião por ser um ópio, embarca contra a situação que necessita do ópio para confortar o povo em condições miseráveis no séc. XIX.

Isto vem a propósito deste post do Diário Ateísta, que refere uma citação de Paul Dirac que vê a religião como

uma espécie de ópio que permite a uma nação tranquilizar-se com sonhos cobiçados e esquecer-se das injustiças que são perpetuadas contra as pessoas. Daí a aliança próxima entre essas duas grandes forças políticas, o Estado e a Igreja. Ambas necessitam da ilusão de que um Deus benevolente recompensa – no Céu se não na Terra – todos aqueles que não se elevaram contra a injustiça, que cumpriram com o seu dever sossegadamente e sem reclamar. É precisamente por isso que a asserção honesta de que Deus é um mero produto da imaginação humana é condenada como o pior de todos os pecados mortais


e da resposta inevitável, vinda por exemplo, daqui:

Sobre a originalidade, o João Vasco deveria ter vergonha de promover estas palavras, como se este discurso fosse novo. Ser ateu, é uma atitude compreensível. Mas fazer do ateísmo uma promessa de um mundo melhor para todos, e instigar o ódio à religião como inimigo público e obstáculo à felicidade das pessoas, é um filme repetido, gasto e com os resultados trágicos que se sabem..


Vê-se que tanto Dirac como o Jairo não entenderam Marx no seu original, ou então decidiram ignorá-lo e entrar numa conversa não sobre Marx, mas sobre Seneca, que famosamente um dia disse,

A religião é tida pelo povo como verdadeira, pelos sábios como falsa e pelos governantes como útil


,ou Napoleão, quando diz que a religião é o que impede os pobres de matarem os ricos.

Pelo contrário, a citação original de Marx é compreensiva do drama psicológico do ser humano que necessita de um conforto, de um espírito, de um coração perante tamanhas condições aberrantes. A mitologia sossega o espírito porque lhe dá esperança, confiança. Marx não está aqui a pregar ódio à Igreja, mas sim a fazer a sua análise pessoal do fenómeno religioso, e a garantir que a luta contra a ilusão faz-se através da "exigência do abandono da condição que necessita de ilusões". A melhoria da condição humana é a luta contra a ilusão da religião, não contra o seu espírito, o seu coração ou o seu "suspiro".

Concordarei que este equívoco foi manipulado por muita gente, bem ou mal intencionada. Mas parece-me apenas justo repôr a verdade histórica e pararmos de dizer asneiras sobre os nossos mortos.

1 comentário:

  1. desconhecia que tinham abusado do Marx
    vista dessa nova luz
    compreendo melhor a sua santa doutrina

    ResponderEliminar